Numa tarde de domingo, em Central Park, ou
numa tarde de domingo, em Hyde Park, ou
numa tarde de domingo, no jardim do Luxemburgo, ou
num parque qualquer de uma tarde de domingo
que até pode ser o parque Eduardo VII,
deitas-te na relva com o corpo enrolado
como se fosses uma colher metida no guarda-
napo. A tarde limpa os beiços com esse
guardanapo de flores, que é o teu vestido
de domingo, e deixa-te nua sob o sol frio
do inverno de uma cidade que pode ser
Nova Iorque, Londres, Paris, ou outra qualquer,
como Lisboa. As árvores olham para outro sítio,
com os pássaros distraídos com o sol
que está naquela tarde por engano. E tu,
com os dedos presos na relva úmida, vês
o teu vestido voar, como um guardanapo,
por entre as nuvens brancas de uma tarde
de inverno.
UM INVERNO EM LISBOA
É verdade que Lisboa, no inverno, não tem a
consistência de uma cidade do norte. O ar
é húmido, o frio não entra na alma, e não
há os brancos puros, nem os cinzentos que
duram, nem sequer o sentimento inquietante
de que o mundo parou sob a mortalha celeste.
As cidades, no entanto, enganam. E em Lisboa,
no inverno, há quem sofra com a solidão que
desce com a tarde. Um fim de frase pode trazer
consigo a percepção da morte; e nenhumas palavras
conseguirão dar um sentido a quem não sabe
que caminho seguir, ou em que café entrar.
Em Lisboa, no inverno, pode ver-se, de
vez em quando, uma borboleta perdida por
entre os carros mal estacionados. As suas asas
não brilham; e pode, até, duvidar-se
se estará viva ou morta. Mas quando os dedos
se aproximam para a agarrar, ela debate-se;
parece fugir; e limita-se a cair para o chão.
É verdade que, no inverno, pouco mais resta
a uma borboleta do que morrer. Mas quem vê,
nela, a ilusão de que a primavera já se aproxima,
interroga-se depois: «é isto a vida? Crisálida
de que nada, vazio, angústia de nunca ter sido?»
EM LISBOA
Entras no café e sentas-te na mesa que
ainda não foi limpa, como se não tivesses
escolha. Afastas de ti o cinzeiro, a chávena ainda
morna, o copo de bagaço bebido até à última
gota, e sacodes os cabelos para que as sombras
que ali estivessem se dissipem. Os teus olhos
ficam presos ao tecto, onde uma fita para
apanhar moscas ficou de um verão há muito
passado. Manchas de humidade e de fumo,
e gesso à vista, compõem o quadro
abstracto onde procuras um sentido para
o que te falta. As tuas mãos hesitam, sobre
as pernas, como se não tivesses decidido
o que fazer. Mas se voltasses a sair, para
onde irias, agora que a tarde caiu e já não
se vê quem passa, por trás da montra? E
se ficares, quem poderá chegar, a esta hora,
para não te deixar só contigo, nessa mesa que
o criado demora em vir limpar? Sem saber
porquê, guardei a tua imagem, e ando com ela
neste poema que sabe o teu nome, sem nunca
o dizer, como se lhe tivesses pedido segredo.
A LUZ DE LISBOA
A luz atravessa o quarto entre
as duas janelas, e é sempre a mesma luz, embora
de um lado seja o poente – onde está o sol, agora – e do outro
o nascente – onde o sol já esteve. No quarto
juntam-se poente e nascente, e é esta
luz que confunde o olhar, que não sabe em que
hora se situa a luz primeira. Então, olho a linha
que percorre o espaço entre as duas janelas,
como se não tivesse princípio nem fim; e
o que faço é puxar essa linha para dentro
do quarto, e enrolá-la, como se me
pudesse servir dela para atar as duas extremidades
do dia ao meio-dia, e deixar que o tempo fique
parado entre duas janelas, a poente
e a nascente, até que o fio se volte
a desenrolar, e tudo
recomece.
Júdice, Nuno. A Matéria do Poema. Don Quixote, 2008.
Nuno Júdice es un ensayista, poeta, novelista y profesor universitario portugués. Consejero cultural de la Embajada de Portugal y director del Instituto Camões en París, publicó antologías, crítica literaria, historia, estudios de Teoría de la Literatura y Literatura portuguesa y mantiene una colaboración regular en la prensa. Divulgador de la literatura portuguesa del siglo XX, publicó, en 1993, Voyage dans un siècle de Littérature Portugaise. Organizada la Semana Europea de la Poesía, en el ámbito de Lisboa ’94 – Capital europea de la cultura. Es actualmente director de la Revista Colóquio-Letras de la Fundación Calouste Gulbenkian. Poeta y novelista, su debut literario tuvo lugar con A Noção de Poema (1972). En 1985 recibiría el Premio Pen Club, el Premio D. Dinis de la Fundación Mateus en 1990. En 1994, la Asociación Portuguesa de Escritores, lo distingue por la publicación de Meditação sobre Ruínas, finalista en el Premio Aristeion de Literatura Europea. También firmó obras para teatro y tradujo a autores como Corneille y Emily Dickinson. Fue director de la revista literaria Tabacaria, publicado por Casa Fernando Pessoa y comisario para el área de Literatura portuguesa en la 49.ª feria del libro de Frankfurt. Cuenta con obras traducidas en España, Italia, Venezuela, Reino Unido y Francia. El 10 de junio de 1992, se convirtió oficial de la Orden de Santiago de la Espada, y el 10 de junio de 2013, fue ascendido a gran oficial de la misma orden.