Alguns poemas de julho
Desenho contra o rectângulo
Se o amor se traduzisse numa figura geométrica
seria aquele rectângulo onde o teu corpo
se reflectiu, num verão antigo, e um sorriso
nasceu no teu rosto como se, na tua imagem,
surgisse a imagem que sonhavas. E o que
eu sonhava era tirar cada um dos lados
do rectângulo e puxar-te para fora do vidro,
em todas as tuas dimensões, como se fosse
possível separar o espelho de quem nele
se reflecte. E avanço com o dedo em direcção
ao vidro, desenhando o teu perfil na sua
impenetrável superfície enquanto o teu sorriso
se transforma em riso ao ver a inutilidade
do meu gesto. Porém, uma e outra vez,
até ao infinito, farei esse desenho até que ouça
a realidade do teu riso e a tua voz que,
por trás de mim, me explica o que devo fazer
para que a tua imagem ganhe a matéria que
procuro, e me possas dizer qual a melhor forma
de traduzir o amor numa forma geométrica.
26-7-23
O espelho da estrofe
Se me perguntarem para que serve
a poesia, peço para pegarem num espelho
de vidro limpo e puro. O rosto que ali
aparece, mais do que aquele de quem o olha,
é o rosto que perdura no olhar que, um dia,
encontrou noutro olhar o seu duplo. Assim,
se a poesia serve para alguma coisa,
é para te ver, para lá do tempo
e da ausência, e novamente ter à minha frente
esse olhar que nunca mais esqueci
e que vive, no mais fundo de mim,
quando te encontro, no espelho do poema,
fazendo com que eu peça que o reflexo
se transforme na realidade do teu corpo.
22-7-23
A rosa
Passa, nestes versos, a corrente
de ar do amor. Em vão fecho as janelas,
encosto as portas, me escondo
atrás das cortinas: o ar atravessa-me
e sinto o teu amor, verso a verso,
ouvindo o murmúrio da tua voz
distante, o roçar dos teus longos
cabelos na minha mão, o calor
da tua boca quando a beijei. E abro
de novo todas as janelas, prendo
as cortinas com a argola
dos teus dedos, deixo que o vento
da tua memória empurre as portas
da estrofe, e tu entras, com a rosa
do desejo presa ao teu pescoço
para que eu a colha, de novo,
e ela floresça na corrente de ar
do amor.
22-7-23
Poema
Invento o amor contigo. Não preciso
de equações, de fórmulas químicas, de experiências
de laboratório que acabam em explosão. O amor
só precisa dessa gramática elementar que vai
da interjeição ao verbo, e passa por um branco
oceano de lençóis. O seu sextante tem a forma
dos teus dedos, e sigo-o com a certeza de não me
perder na viagem do corpo. Sei que não preciso
de registar esta invenção: basta que fique
inscrita no poema, e para sempre
terá a forma do teu rosto, a tua voz
que nunca esqueço e esse movimento que,
ao contrário das leis da gravidade,
nos puxa um para o outro.
21-7-23
Nova fotografia de perfil
Sentada, com os cabelos escorridos
para o ombro, como um rio negro
sem limites, fecha os olhos. O que
ela quer ver está dentro dela, e
não se adivinham fronteiras
para a sua imaginação. Nas mãos,
que os dedos prendem uma à outra,
segura um lápis, como se tivesse
um desenho para acabar. Porém, é como
se estivesse na dúvida entre
utilizá-lo ou deixá-lo cair, para
se poder levantar e seguir
o seu caminho, deixando para
mais tarde os sonhos que teve.
18-7-2023
O tempo é uma questão de poesia
Da janela da estrofe, olho para as palavras
que voam, como pássaros enlouquecidos
pelo vento, e tento apanhá-las com a fisga
do verso. As palavras, porém, dizem-me
que vão a caminho da eternidade, e tenho
de acreditar nelas. Também a estrofe muda
com o tempo, e o que nos diz depende
do que sentimos quando atravessamos
o seu campo. É então que o sol se abre,
e os pássaros pousam nos ramos onde já
se adivinham as flores da primavera
que o seu canto alimenta.
Muitas vezes pensamos no que temos
pela frente quando a noite se aproxima. Há
uma súbita consciência de que o céu
ficará vazio, e só um ruído de insectos
perturbará o silêncio do mundo. No entanto,
abro a rede que usei quando as palavras
passavam à minha frente: e elas saem
de dentro dela e enchem a página, numa ordem
que segue o ritmo desse canto que ouvi
quando andei pelo campo da estrofe. É
como se um novo sentido surgisse desse
ritmo e fizesse cantar o silêncio.
Talvez haja uma diferença entre as palavras
que temos connosco e as que nos fogem. Estas,
obrigam-nos a correr pela frase até encontrar
o que queríamos dizer; as outras, fazem
parte de nós e nem precisamos de nos esforçar
para que elas nos encontrem. Porém, sem
aquelas que não sabemos de onde surgem,
a que dicionário da vida pertencem, em que
obscuro quarto as perdemos, ou em que
luminosa manhã as ouvimos pela primeira
vez, o canto não chegará ao fim, como
agora que o ouço na voz do poema.
9-6-23
Nuno Júdice es un ensayista, poeta, novelista y profesor universitario portugués. Consejero cultural de la Embajada de Portugal y director del Instituto Camões en París, publicó antologías, crítica literaria, historia, estudios de Teoría de la Literatura y Literatura portuguesa y mantiene una colaboración regular en la prensa. Divulgador de la literatura portuguesa del siglo XX, publicó, en 1993, Voyage dans un siècle de Littérature Portugaise. Organizada la Semana Europea de la Poesía, en el ámbito de Lisboa ’94 – Capital europea de la cultura. Es actualmente director de la Revista Colóquio-Letras de la Fundación Calouste Gulbenkian. Poeta y novelista, su debut literario tuvo lugar con A Noção de Poema (1972). En 1985 recibiría el Premio Pen Club, el Premio D. Dinis de la Fundación Mateus en 1990. En 1994, la Asociación Portuguesa de Escritores, lo distingue por la publicación de Meditação sobre Ruínas, finalista en el Premio Aristeion de Literatura Europea. También firmó obras para teatro y tradujo a autores como Corneille y Emily Dickinson. Fue director de la revista literaria Tabacaria, publicado por Casa Fernando Pessoa y comisario para el área de Literatura portuguesa en la 49.ª feria del libro de Frankfurt. Cuenta con obras traducidas en España, Italia, Venezuela, Reino Unido y Francia. El 10 de junio de 1992, se convirtió oficial de la Orden de Santiago de la Espada, y el 10 de junio de 2013, fue ascendido a gran oficial de la misma orden.